A farsa do telefone

HISTÓRIA — A invenção do telefone ganha nova versão nos Estados Unidos



Cristiano Dias

Há duas semanas, o Congresso americano corrigiu um erro histórico. A pedido de Vito Fossela, um deputado de origem italiana, os parlamentares reconheceram o florentino Antonio Meucci como o verdadeiro inventor do telefone. Nessa nova versão da história, o escocês Alexander Graham Bell vira um oportunista que se aproveitou do trabalho de Meucci, um imigrante miserável que não tinha um tostão para pagar o registro de patente de seu invento. O governo do Canadá — onde Bell passou boa parte da vida — contra-atacou, jurando fidelidade ao famoso cientista escocês e trazendo à tona mais um bate-boca sobre quem inventou o quê. Quase um século depois de o avião ter sido inventado, brasileiros e americanos ainda discutem se a paternidade cabe a Santos Dumont ou aos irmãos Wright. O padre brasileiro Roberto Landell de Moura teria feito a primeira transmissão radiofônica dois anos antes do italiano Guglielmo Marconi e há quem diga até que Samuel Morse não inventou o telégrafo. Ainda assim, a quizila entre Meucci e Graham Bell é um capítulo a parte.
Antonio Meucci era desses garotinhos que explodiam o próprio quarto misturando líquidos esfumaçados em potes de vidro colorido. Passou a juventude estudando engenharia mecânica e trabalhou como eletricista em vários teatros de Florença. A vida ficou dura após 1830, quando as revoluções nacionalistas sacudiram a Europa. A violência tinha chegado à Itália e Meucci decidiu mudar-se com a mulher para a América. Na época, assim como vários outros imigrantes proibidos de entrar nos Estados Unidos, ele acabou desembarcando em Cuba, onde conseguiu emprego de eletricista na Ópera de Havana. Para engrossar a receita no fim do mês, montou um consultório nos fundos do teatro e virou médico, cuidando de enfermidades com choques quase imperceptíveis. Um dia, tratando a dor de cabeça de um cliente, levou um susto. Ele havia colocado um eletrodo ligado a um fio de cobre na boca do doente e caminhado até outra sala para acionar o aparelho que liberaria a descarga elétrica. Foi quando escutou o gemido do paciente e percebeu que a voz poderia caminhar por impulsos elétricos. O ano era 1849. Alexander Graham Bell tinha dois anos.
Percebendo o potencial da descoberta, Meucci fez de tudo para se mudar para os Estados Unidos, único lugar onde poderia desenvolver e comercializar o invento. E conseguiu. No ano seguinte, comprou uma casa numa cidadezinha próxima a Nova York e abriu uma fábrica de velas, de onde tirava dinheiro para aperfeiçoar o que chamou de “teletrófono”. A novidade caiu nas graças da colônia italiana. Até o revolucionário Giuseppe Garibaldi, que morou algum tempo com o amigo Meucci enquanto esteve exilado, testemunhou a maravilha. A primeira apresentação pública, em 1860, foi um sucesso. Vários jornais de língua italiana em Nova York se surpreenderam com “a voz que viajou por vários quilômetros”. Infelizmente para Meucci, os investidores não se animaram. Em parte porque muitos não viam a menor utilidade num “telégrafo que fala”, em parte porque aqueles que se interessavam não tinham dinheiro para produzi-lo em larga escala. Enquanto a saúde do italiano piorava — ele foi gravemente ferido na explosão de um navio a vapor em 1870 —, o dinheiro era cada vez mais curto. No ano seguinte, sua mulher teve de vender vários “teletrófonos” para uma loja de quinquilharias pela mixaria de US$ 6. Meucci sabia que era preciso patentear a invenção, mas o registro custava a bagatela de US$ 250. O máximo que conseguiu pagar foram US$ 10 para assegurar a intenção de patente, que preservava a descrição do invento e deveria ser renovada anualmente. Em 1873, já não tinha nem mesmo os US$ 10 para manter esse privilégio, e a patente caducou. Recorreu, então, à Western Union Telegraph, gigante das comunicações da época. Os executivos da companhia lhe prometeram estudar o produto e, em troca, Meucci entregou-lhes suas anotações e protótipos, que desapareceram nos laboratórios da empresa. Dois anos depois, o espertalhão Alexander Graham Bell, patenteou o telefone. Quando soube, Meucci quis entrar na Justiça, mas descobriu que todos os documentos sobre seu “teletrófono”, que haviam sido registrados na Agência Nacional de Patentes, em Washington, também haviam sumido. Investigações posteriores revelaram estranhas ligações entre funcionários do órgão que regula as patentes com executivos da Bell’s Company, fundada por Bell em 1877. Mais tarde, descobriu-se também que Graham Bell havia concordado em transferir, durante um período de 17 anos, 20% de todo lucro com a comercialização do telefone para a Western Union. Mesmo assim, Meucci insistiu e conseguiu fazer com que a Suprema Corte analisasse o caso. Em 1889, quando o imbróglio jurídico estava próximo do fim, ele morreu, deixando o estrelato para Graham Bell. O escocês levou seu telefone para a Exposição Internacional da Filadélfia, em 1876, quando o invento virou a cabeça de Dom Pedro II e fez com que o imperador trouxesse a novidade para cá.
Desde então, Graham Bell defendeu com sucesso sua patente em mais de 600 processos e morreu milionário em 1922. Oitenta anos depois, vira protagonista do primeiro caso de espionagem industrial da história.